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6.5.06

Caminhando pela calçada, no frio final de noite de Mogi das Cruzes, me sentia entorpecido, como se estivesse vivendo um sonho. Pesadelo, talvez, seja o mais apropriado. Frases de efeito e os velhos clichês das análises futebolísticas para justificar o injustificável: a injustiça cometida contra um grupo que, por ser tão grande, é chamado de nação.

Apenas algumas horas antes poderia jurar que um desfecho como aquele seria inconcebível, improvável. Mais: impossível de acontecer. Afinal, aquela noite de quinta-feira, quatro de maio de 2006, prometia ser grande, memorável. E será, porém não da maneira que prevíamos – e desejávamos.

Caiçara passou para me pegar em casa por volta das 21h. Depois de meses, enfim reencontrava um grande amigo da juventude. Nos conhecemos quando Caiçara mudou de Santos (por isso o apelido) para Mogi. E acabamos por estudar na mesma sala do então colégio Santo Agostinho. Era o segundo ano do ensino médio.

A princípio, Caiçara reunia todos os requisitos para se tornar um inimigo de um jovem como eu, que tinha facilidade para fazer inimizades. E, para piorar, ainda ganhou o coração da garota que eu acreditava que amava. Eu o odiei. Mas os rancores duraram pouco tempo. Logo descobrimos muita coisa em comum, a começar pelo gosto musical. De repente, havíamos nos tornado grandes amigos.

Caiçara então passou a ser o alvo principal de minhas gozações (admito que tenho um jeito estranho de demonstrar apreço). Como ele fazia muito sucesso com as mulheres, eu fazia de tudo pra constrangê-lo na frente delas, principalmente quando ele tentava xavecar uma durante o intervalo. Eu e os outros colegas de sala nos divertíamos muito. E a própria vítima não conseguia conter as gargalhadas.

Mas o segundo grau chegou ao fim e veio a universidade, que me afastou de Caiçara e de todos os outros colegas do Santo Agostinho. Eu fui cursar jornalismo em uma das universidades da cidade. Ele foi fazer direito na outra. Ficamos anos sem nos falar até que, num daqueles encontros improváveis, conseguimos retomar a amizade.

Só por esse fato, aquela noite de quatro de maio já seria especial. E, acreditávamos, ficaria completa com a vitória do Corinthians sobre o River Plate, pela Libertadores da América. Caiçara e eu seguimos para a padaria Canadá, no centro de Mogi, para assistirmos ao jogo. No local, pequeno, se aglomeravam outros cerca de 50 corinthianos, olhos fixos no monitor instalado próximo ao teto da padaria. Um dos únicos locais da cidade onde aqueles que não são assinantes da Sportv poderiam assistir ao jogo.

Havia gente de todo tipo na padaria. Sentados no balcão, bem de frente para a tv, senhores de meia idade que deviam ter chegado ao local ainda antes do anoitecer para reservar o lugar privilegiado. Eu Caiçara conseguimos nos acomodar nos fundos da padaria e teríamos que ficar em pé o tempo todo. Mas demos sorte. Quem chegou mais tarde quase nada pode ver. Para conseguir de alguma maneira acompanhar a partida, um rapaz se valia do reflexo da televisão em um vidro do caixa da padaria.

Durante o primeiro tempo do jogo tudo correu muito bem. Quando o time entrou em campo, a platéia da Canadá bateu palmas. Alguns arriscaram gritos de incentivo, como se os jogadores realmente pudessem ouvi-los através do televisor. Os erros do time e a arbitragem, quando contrária aos corinthianos, provocavam reações públicas de revolta e inconformismo de uns. Pessoas que passavam de carro e moto pela rua Ricardo Vilella, e até motoristas de ônibus, reduziam a velocidade para acompanhar um pedacinho da partida pelo televisor. Quando Nilmar marcou de cabeça o gol do Corinthians, a padaria foi tomada por uma explosão de alegria. Eu finalmente me entreguei a toda aquela atmosfera e, enfim, me senti como se estivesse no estádio do Pacaembu.

No intervalo do jogo, muita animação e conversa regada a cerveja. Eu cheguei a avaliar que a defesa do Corinthians, ponto mais vulnerável da equipe, estava se portando muito bem naquela noite. Mas temi ser precipitado e, por uma ponta de superstição, decidi mantê-la só para mim.

Fiz bem. Bastaram nove minutos no segundo tempo para que a defesa corinthiana mostrasse o que todo mundo sabia, mas insistia em não admitir: este não é um time capaz de vencer uma Libertadores. A ducha fria veio com o lateral Coelho, e o seu gol contra. A equipe, que até então vinha mostrando um equilíbrio notável, desmoronou.

Quando o River virou o jogo, os sinais de frustração podiam ser vistos nos olhos e no rosto de todos na padaria. Mas como a esperança, dizem, é a última que morre, os corinthianos só deixaram a Canadá quando os argentinos fizeram o terceiro gol e jogaram a pá de cal no túmulo alvi-negro.

Caiçara e eu deixamos a padaria. Enquanto caminhávamos pela calçada, naquele final de noite frio de Mogi das Cruzes, ainda incrédulos, muitas coisas passavam pela minha cabeça. Pensei que talvez a Libertadores realmente seja um sonho inalcançável para o corinthianos. Um daqueles tabus que nunca serão quebrados.

Me lembrei de Caiçara dizendo, quando ainda aguardávamos o início da partida, de como é surpreendente o amor que esta torcida tem pelo clube. Doméstico, com uma história e importância no futebol mundial que parecem inexpressivas diante dos resultados de São Paulo, Palmeiras e Santos. Mesmo assim, continuamos sendo os maiores rivais de todos eles. E com uma torcida indiscutivelmente maior.

Caiçara me conta que uma vez um corinthiano das antigas lhe disse que hoje é muito fácil torcer para o Corinthians. Difícil foi passar pelos 23 anos de fila sem arranhar o amor pelo time. Pode ser. Essa eliminação vai deixar uma marca profunda. Mas a verdade é que, apesar das decepções, derrotas e dissabores, nunca vamos abandonar esta paixão. Talvez esta seja mesmo a graça em ser corinthiano.

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