<$BlogRSDUrl$>

8.2.05

Ficará para a história este dia. Na verdade uma noite. Uma noite de Carnaval, que eu passei sóbrio. Abaixo vai um texto, um pouco longo é verdade, mas que relata o que aconteceu. Deve ser encarado como uma reportagem, por que é isso que ela é. Uma reportagem que fui fazer mas que nunca vai existir, pelo menos não na concepção que ela teria originalmente.


Minha mulher achou estranho. Para alguns de meus amigos, foi motivo de chacota. Afinal, convenhamos, não é usual um crítico contumaz das religiões em geral, escolher justo uma comunidade católica para passar o sábado de Carnaval. No meu caso, não foi bem uma questão de escolha. Apesar de a sugestão ter partido de mim, fui a trabalho. O objetivo era registrar em uma reportagem que em algum lugar deste país existem pessoas que conseguem promover a "Festa da Carne" mesmo sem álcool, drogas e sacanagem. "Se até feijoada light já inventaram, vai ver então que é mesmo possível um Carnaval sem os ingredientes principais, os mais saborosos", pensei comigo.
Cheguei a Cachoeira Paulista por volta das 19h. Encravada no Vale do Paraíba paulista, a cidadezinha era, há até pouco tempo, conhecida apenas por abrigar o Cptec, órgão vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, responsável pelas previsões climáticas de todo o país. Você não sabia que o Cptec ficava ali? Não se incomode. Aposto que 99% dos brasileiros não têm idéia que ele exista.
A tal sigla, que quer dizer Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos, aparece todos os dias no Jornal Nacional e, só por isso, deveria ser muito famosa. Surge sempre quando o telejornal informa a previsão do tempo. Do lado esquerdo do televisor, na parte de baixo. Desaparece poucos segundos depois.
Poucos homens a percebem porque, instintivamente, nossa atenção se volta para os gestos da gostosa que apresenta os dados climáticos. Eu mesmo só vi a sigla uma vez, porque neste dia o quadro foi apresentado por um cueca...
Pois bem. De uns tempos pra cá, Cachoeira Paulista tem chamado a atenção por conta do que vem acontecendo numa chácara localizada próximo ao centro da cidade. Não é apenas uma chácara. É uma chácara de 248 mil m2.
Ali fica a sede da Canção Nova. É uma comunidade católica. Administra uma emissora de tv batizada com o mesmo nome. São cinco retransmissoras espalhadas pelo Brasil. Além de 21 emissoras de rádio. Um verdadeiro conglomerado de mídia.
O cenário é o de uma cidade cenográfica. Eu nunca estive em uma cidade cenográfica antes, mas deve ser parecido com o que vi. A entrada é por um portão grande que fica aberto 24 horas. Entra ali quem quiser e na hora que achar mais conveniente. São dezenas de seguranças espalhados por todas as partes.
Recebe os visitantes uma cruz metálica de uns cinco, seis metros de altura. Atrás dela, está o estúdio de tv e o prédio da rádio. Mas não é tudo. Alí também funciona uma agência de propaganda, uma editora de livros e um estúdio onde são gravados cds e fitas cassete com melodias de teor religioso, interpretadas por cantores e bandas pertencentes à congregação.
Também são produzidos ali, diariamente, dezenas de cópias dos sermões dos padres feitos durante cada uma das missas rezadas na paróquia local - e que estão à disposição dos fiéis no formato de CD, cassete ou vídeo. Você pode adquirir tudo em um mercado instalado na própria chácara. Mas se preferir, pode comprar pela internet (a Canção nova tem um portal visitadíssimo) ou então pelo "call-center". São 160 atendentes prontas para, a qualquer hora do dia, anotar o seu pedido e despachá-lo para qualquer ponto do país.
Funcionários, aliás, a Canção Nova tem muitos. São cerca de 1.500. Mas 60% são missionários, ou seja, trabalham praticamente em troca de casa, comida e roupa lavada. Doam a maior parte do salário para a comunidade. Outra fonte de renda do grupo religioso são os 500 mil "associados", pessoas comuns, espalhadas pelo país, que simpatizam com a causa católica e doam dinheiro mensalmente à comunidade.
MOSANA
É uma dessas missionárias que me acompanha no "tour" pelo chácara gigantesca. Chama-se Mosana. Tem 23 anos e há cinco deixou Brasília para viver no local. Abandonou a família, colocou um súbito ponto final no namoro de cinco anos, desistiu do recém-iniciado curso de jornalismo da UNB.
"Recebi o chamado de Jesus", justifica ela ao repórter. Mosana mora em um dos alojamentos da congregação. Conta que vivem ali pessoas casadas, solteiras e adeptas da castidade. Afirma que faz parte do último grupo. Relata que os missionários praticamente vivem de doações. Até o alisamento feito em seus cabelos castanhos, na altura do pescoço, aconteceu, diz ela, por graça de uma cabeleireira caridosa.
Mosana é uma mulher simpática e que se comporta com muita solicitude e humildade. Demonstra isso no momento em que me leva até o mini-shopping instalado na comunidade. Na entrada, uma mulher, provavelmente outra missionária, estica o braço direito e pede que a assessora de imprensa entregue a sacola plástica que carrega nas mãos. Mosana poderia simplesmente mostrar o crachá que a identifica como gente da casa. O ato, certamente, faria a tal moça recuar. Mas ela nem titubeia e cede a sacola, que recebe um lacre preto de plástico, para evitar os furtos. "Sou uma pessoa como qualquer outra que está aqui", diz ela.
O CARNAVAL
A missa terminou pouco depois das 19h30. Imediatamente, cerca de 25 mil fiéis abandonam o novo rincão, um ginásio coberto, gigante, com capacidade para 170 mil pessoas. Eles sobem por uma rampa e, a 200 metros de distância, se aglomeram agora em uma área que fica próxima à entrada da chácara.
No local, o trio-elétrico já aguarda a multidão. Poucos minutos depois, a banda começa a tocar e, assim, tem início o segundo dia do Carnaval 2005 promovido pela Canção Nova.
Eu escrevi 25 mil pessoas? Trata-se do número oficial. Na opinião do repórter, não passavam de 10 mil. E olhe lá. Mas, convenhamos, a matemática não é meu forte.
O fato é que o trio-elétrico deu início ao carnaval. E que milhares acompanhavam o caminhão azul pelo trajeto. Aquela festa poderia ser confundida com qualquer outra realizada em incontáveis pontos do país. Entretanto, alguns detalhes fazem deste um carnaval insólito.
Das potentes caixas acústicas transportadas pelo caminhão, ouve-se axé music, pagode e samba. Mas preste atenção em uma das letras cantadas pela banda:

Já chegou, Já chegou
O Espírito Santo chegou
Já chegou, Já chegou
O Espírito Santo chegou

Ou então esta outra:

Sou DDD, Doidinho De Deus, Doidinho De Deus
Sou DDD, Doidinho De Deus, Doidinho De Deus
Mas pelo menos meu hospício é lá no céu
Mas pelo menos meu hospício é lá no céu

Os romeiros-foliões pulam, dançam, cantam, executam seqüências coordenadas de passinhos, como se estivessem...como se estivessem...em um baile de carnaval! São principalmente jovens. Vêm de diversas partes do país e até do exterior. Uma caravana trouxe 50 moradores da cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero. Haviam portugueses e franceses também.
A maioria fica acampada nos gramados espalhados pela chácara. São centenas de barracas. O espaço é dividido em três campings. Em um deles, ficam apenas os rapazes. Em outro, as mulheres. O último é destinado a famílias. Uma mulher e um homem só dormem juntos numa mesma barraca se apresentarem a certidão de matrimônio.
Bebida e drogas não são permitidas no interior da chácara. Na lanchonete, só se encontra água, suco e refrigerante. Ninguém é revistado ao entrar na área, mas se for flagrado por um dos seguranças esvaziando uma lata de cerveja ou fumando um baseado, pode acabar expulso. Segundo Mosana, entretanto, nesse último caso auxílio psicológico poderá ser oferecido ao infrator que quiser abandonar o vício.
Tudo ali é gratuito, exceto a comida. No banheiro masculino há chuveiros e uns cinqüenta vasos sanitários. E, acreditem, tudo é muito limpo apensar do uso intenso. A estrutura do local, aliás, impressiona. A cidade de Cachoeira Paulista não conta com um caixa-eletrônico da Caixa Econômica Federal. Mas na Canção Nova há um deles. Ao todo são quatro agências bancárias dentro da área.
As camisetas com imagens de Jesus e Maria, ou então frases do tipo "100% católico", ditam a moda no lugar durante a festa. O tipo mais comum tem estampada a sigla "PHN", que significa "Por Hoje Não [pecarei]".
Mulher bonita e gostosa tem aos montes. Mas todas vestem peças comportadas, como calça jeans e camiseta. Uma morena linda passa ao meu lado. Tem nos pés sandálias de salto alto. A calça azul-geladeira esconde a pele mas, por justa, revela que a dona tem pernas bem torneadas e glúteos formosos. A blusa branca, igualmente justa, mostra uma cintura fina e seios fartos.
Em um baile de carnaval convencional, a morena seria assediada por 10 entre 10 machos que cruzassem com ela. Mas ali eu sou o único a torcer o pescoço para acompanhar seu belo corpo que toma distância. Alguns rapazes ao redor percebem meu comportamento lascivo. Me olham com reprovação. Devem ser um bando de viados.
No ambiente há uma completa ausência de sensualidade. Não vi um único casal trocando beijos ou amassos. As brigas, tão comuns em qualquer baile de carnaval convencional, não têm vez ali. Em mais de 20 anos de festa, nunca se registrou uma confusão sequer.
O cantor anuncia que o trio-elétrico encerra a participação no carnaval daquela noite. A festa continuaria agora no interior do ginásio gigante. Antes, porém, avisa ao microfone que um telefone celular foi encontrado por alguém, que procura o dono. Realmente este não é um carnaval comum...
Cominho para o novo rincão, como chamam o ginásio, e encontro no caminho uma moça que leva uma Bíblia nas mãos. Ela concorda em colabora com a reportagem. Diz que veio de Goiânia e que estuda economia. "No mundo lá fora, os jovens são alienados. Aqui as pessoas tem mais consciência da vida", me disse ela.
No rincão começa um show com a banda Mensagem Brasil. O ritmo das músicas é o gospel. Mas em algumas vezes mistura pagode ou ritmos caribenhos.
O cantor é um negão alto e barrigudo. Veste calça preta e camiseta branca por baixo de uma camisa preta. Transpira como um bode. O acompanha no palco três back-vocals. Nada de mulatas semi-nuas ou gostosas com shortinhos executando danças libidinosas. Trata-se de um trio de tiazinhas com idade entre 40 e 50 anos. A mais ousada delas veste uma blusa que deixa os braços a mostra.
O repórter fotográfico diz que já tem material suficiente. Digo a ele que podemos ir embora. Me despeço de Mosana (apenas um aperto de mão) e sigo para o carro. São 11h30 da noite e, dali a no máximo uma hora, a festa seria suspensa e os fiéis retornariam para suas barracas.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?